quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Democracia: um deus (Parte I)

Qualquer sistema coletivista é passional e presunçosamente messiânico. A superação do ser individual é a grande eclosão do coletivismo, e disso decorre que nenhuma pessoa pode ser edificada sobre outra coisa senão o social. O coletivista dirá, com aquela empáfia que lhe é característica, que os sistemas coletivistas têm como âmago o reconhecimento da interdependência de todos os seres humanos, e não na negação do indivíduo. Tal afirmação, contudo, além de se mostrar historicamente inconsistente, pretende monopolizar o reconhecimento de interdependência, como se para reconhecer que as pessoas dependem umas das outras fosse imprescindível aderir a alguma espécie de coletivismo. O fato é que a experiência histórica nos revela que qualquer sistema coletivista tem levado a um recrudescimento da coerção da maioria ou da "minoria barulhenta" sobre os outros grupos e indivíduos.

A antropologia moderna, ao afirmar certa bondade ou neutralidade na natureza do homem, leva-nos a pensar que os ajuntamentos massivos de seres humanos devem possuir essa mesma bondade. Tivesse persistido a antropologia cristã como dominante na cosmovisão moderna, com sua ênfase no pecado e na natureza caída de cada ser humano, provavelmente menor confiança seria depositada no povo e na sua capacidade de decidir com justiça e equidade. Destarte, é justamente em virtude de uma antropologia secularizada que qualquer sistema coletivista ganha força e aparente legitimação. 

Quando um coletivista democrata deposita confiança na decisão da maioria ou, como se costuma dizer, "do povo", parte da premissa de que uma maioria tem potencialidade real de ser mais justa que a minoria, e que distribuir o poder para o maior número de indivíduos minora os quadros de insatisfação da sociedade. Há um quê de verdade nisso, como bem ressalta Frank Karsten: "um dos aspectos mais perversos da democracia é o de que os abusos do governo contra os direitos individuais são mais facilmente aceitos pela população, devido a ilusão de que numa democracia é o povo quem governa".

Desta feita, pode-se questionar se há de fato uma distribuição de poder ou se ele será sempre exercido por uma minoria. Essa minoria será um pouco maior em um estado socialista, mas apenas em virtude de sua acachapante necessidade de maquinário para manter o intervencionismo totalitarista que lhe é intrínseco, onde o voto, com a escusa de ser poder indireto, torna-se mera ferramenta ilusória para gerar uma sensação de potencial mudança para melhor. É como estar com as rédeas de um cavalo morto nas mãos: tem-se à mão o objeto utilizado para controlar, mas o que se julga controlar não funciona.

O princípio da alternância de poder e do término do "direito de sangue" dos governantes, tão endeusados pelos democratas, procuram embasar a afirmação de que é através do voto que há, de fato, o exercício de poder por parte do povo, que passa a ter a capacidade de depor governantes e substituí-los em processos regulares de eleição, bem como a possibilidade de cada um ser votado. Esses princípios têm lá suas boas qualidades: não afirmam a superioridade ontológica de um indivíduo em relação a outro e possibilitam a exclusão dos perversos da política. Nada obstantes, essas são qualidades virtuais, e apenas virtuais. Funcionam no macroconceito da democracia, mas ignoram que é com a mesma potência com que se retira um governante ruim do poder que também são depostos os mais justos e eternizados os escroques sucateadores das liberdades e surrupiadores dos tesouros dos indivíduos.

Isso significa que a resposta que buscamos é aparentemente mais recôndita. É no bom conceito de o que vem a ser o povo que residem as esperanças democráticas. Mas o que é o povo? Karsten elucida que "o primeiro problema é que 'o povo' não existe. Há milhões de pessoas apenas, com milhões de opiniões e interesses. Como um comediante holandês disse uma vez: 'A democracia é a vontade do povo. Toda manhã eu fico surpreso ao ler no jornal o que é que eu desejo'". Ontologicamente, o povo não é um organismo sinérgico, onde o todo é maior do que a soma das partes. O povo é exatamente a soma de suas partes; e suas partes são contraditórias e comumente procuram apenas as satisfações mais imediatas de seus próprios interesses egoísticos. São muitos grupos interessados em impor sobre os outros os seus próprios interesses através da democracia. O vencedor passa a ter o direito de utilizar a máquina coercitiva do Estado para minar a liberdade alheia.

Partindo da antropologia cristã, o ser humano é naturalmente corrupto, egoísta e com propensões à dominação injusta. O coletivista democrata tem a esperança de somar milhões de indivíduos com natureza caída para então gerar um corpo coletivo com natureza justa e etérea. É como juntar três terroristas convictos em um sistema fechado e esperar que deles saia um pacifista nato. Ledo engano! O grupos efervescentes da sociedade levam as características de seus indivíduos. Nenhum sistema meramente filosófico-político pode ser a esperança de mudança das injustiças deste mundo. No final, o problema está no ser humano. Daí decorre a necessidade de redenção, e não de criação de um sistema à prova-de-tudo. A razão de nos preocuparmos, então, especificamente com a democracia é em virtude de seu caráter de deidade intocável, messiânica e axiomática nesta modernidade. Ademais, embora nenhum sistema esteja salvaguardado da maldade humana, há sistemas melhores que a democracia, que muito brevemente serão tratados noutras ocasiões. Contudo, resta-nos uma primeira conclusão: um sistema que dilui o indivíduo na massa disforme do coletivo, que promete a salvação, que se baseia no monopólio da virtude para adquirir um status de inquestionável e coercitivamente suplantar os direitos dos indivíduos sequer poderia ser tido como uma opção.

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